Não há dúvida, somos diferentes: homens e mulheres não nascem iguais. Somos macho e fêmea da espécie humana que se completam e se complementam. Ou pelo menos assim deveria ser.
No entanto, vemos que ao longo do tempo foram sendo construídos papéis diferenciados para homens e mulheres. Cores, gestos, comportamentos, atitudes, modelos do masculino e do feminino que nada têm a ver com as diferenças biológicas.
Além disso, esses papéis foram construídos sobre o mito da superioridade masculina, criando assim uma estrutura que domina, reprime e subordina a mulher. Todas as características consideradas femininas são tidas como fraquezas, defeitos, insuficiências; todas as que são consideradas masculinas, qualidades e fortalezas. E também se considera como virtudes femininas tudo aquilo que subordina e discrimina.
A educação que começa no seio da família e continua ao longo da vida na escola, nos diferentes ambientes sociais e através dos meios de comunicação continua reforçando esses papéis e padrões culturais, criando estereótipos: para o homem a autoridade, o poder de decisão, a produção de bens, o mundo exterior; para a mulher, a obrigação de obedecer, a reprodução da vida em todos os seus aspectos, o mundo interior, as quatro paredes. Essa injusta e desigual relação entre homens e mulheres – as denominadas relações sociais de gênero – gera uma grande violência estrutural cotidiana, muitas vezes invisível, considerada “natural”, mas que muitas vezes chega aos maus tratos, à agressão, à violação e até à morte “em legítima defesa da honra” como justificam ainda algumas interpretações de leis e códigos. Embora nas últimas décadas o movimento de mulheres tenha conquistado uma série de leis e convenções internacionais que protegem os direitos humanos das mulheres, sua aplicação é ainda muito limitada e em muitos países nem saíram do papel. Em mais de trinta anos trabalhando em projetos de educação popular feminista pudemos comprovar que muitas mulheres ainda consideram própria de sua condição de mulher a subordinação, a opressão e o fato de ser “cidadã de segunda classe”. O processo para chegar a compreender o caráter social do desequilíbrio nas relações de gênero é longo e difícil, mas vai se desenvolvendo na medida em que as mulheres começam a participar e a se organizar. Ao sair do seu ambiente doméstico as mulheres começam a “descobrir” a violência que se esconde atrás dessa divisão de mundo entre homens que dominam e mulheres que são dominadas. Algumas reflexões de participantes de cursos e oficinas que coordenamos com grupos de mulheres são testemunho desse despertar.
“é uma violência que a mulher seja discriminada por seu sexo e que o trabalho doméstico não seja valorizado, considerado como “não trabalho”.
“é uma violência que a mulher tenha menos acesso à educação e às oportunidades de trabalho”.
“é uma violência que a mulher ganhe menos pelo mesmo trabalho, que esteja exposta ao assédio sexual do patrão, que seja despedida quando se casa ou fica grávida.”.
“é uma violência que a mulher não possa decidir sobre seu corpo, que tenha sua sexualidade controlada e seja vista como objeto sexual”.
“é uma violência a dupla jornada de trabalho e ter que assumir sozinha a responsabilidade de criar e educar os filhos”.
“é uma violência que a mulher não tenha acesso à terra para cultivá-la”.
“é uma violência que apanhe do companheiro e que não possa contar com apoio porque 'em briga de marido e mulher não se mete a colher'”
“é uma violência não poder ser ela mesma, ser considerada sempre a 'filha de…' 'a mulher de…', 'a viúva de…', 'a mãe de…'
Educação popular feminista
É a partir dessas reflexões que um processo de educação popular feminista busca trabalhar a consciência de que é preciso mudar. Que essa violência estrutural não é “natural”, que as mulheres não têm que aceitar seu destino porque são mulheres. Na medida em que se vai conhecendo como e porque foram sendo estruturadas essas relações de gênero, pode-se começar a pensar em desestruturá-las. Se for algo construído, pode-se desconstruir. Mas só a consciência não é suficiente. Temos que aprofundar a questão, organizar-nos, participar e multiplicar nosso conhecimento. O movimento de mulheres tem se fortalecido muito nas últimas décadas, chegando a ser considerado por alguns pensadores como o movimento mais importante do século 20; e embora tenha se desenvolvido com características diferentes em distintos países, tem uma mesma proposta: lutar por uma sociedade mais justa, mais humana, onde valham os direitos de homens e mulheres, onde se respeitem as diferenças. A chamada educação popular feminista que nasceu e vem se desenvolvendo no marco desse movimento, particularmente na América Latina, tem desempenhado um importante papel nesse contexto. Partindo do cotidiano das mulheres, re-valorizando seu espaço, seu papel reprodutivo, sua sexualidade, seu direito ao prazer, tem contribuído para que as mulheres conquistem importantes espaços no mundo do trabalho remunerado, nos sindicatos, nas associações, na política, nas instituições do estado. Paz É parte de sua proposta pedagógica contribuir para que as mulheres se reconheçam como seres humanos plenos, como cidadãs, e isso é fundamental na luta pela paz, pois não pode haver paz enquanto metade da humanidade for submetida a uma violência cotidiana, permitida e referendada por leis e costumes e muitas vezes consentida. A paz não é só a ausência de conflito armado. É a convivência harmoniosa e sem preconceitos entre os seres humanos, entre homens e mulheres, entre pessoas diferentes, mas que se respeitam. O grande desafio da luta pela paz não é apenas denunciar a guerra, a fome, a exploração, a corrupção, a destruição do meio ambiente, mas ir além. Nesse sentido as mulheres têm no feminismo uma proposta de sociedade que parte das mulheres com uma perspectiva de gênero e se articula com outros projetos que têm como eixo outras relações sociais – de classe e de etnia, por exemplo – e toma em conta as diferenças de geração, culturais, de opção sexual e educacionais. Se chegarmos a conseguir um mundo mais justo, em que se respeitem da mesma maneira os direitos humanos de homens e mulheres, sem importar a cor da pele, a etnia, a classe social, a idade, a crença religiosa, a opção sexual, então, sim, teremos PAZ.
*Beatriz Cannabrava é associada-educadora e fundadora da Rede Mulher de Educação. Conselheira Consultiva e fundadora da Repem– Red de Educación Popular entre Mujeres de América Latina y el Caribe. Diretora adjunta e fundadora da Associação de Mulheres pela Paz – Conselheira do Espaço Cultural Diálogos do Sul.
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